quarta-feira, dezembro 22, 2010

Cat people


Na sala de espera somente nós dois.
Escolho o canto esquerdo junto ao banheiro feminino.
Na parede oposta lê Veja uma mulher.
- Esconde Veja a beleza do rosto. 

Pernas cruzadas, bota preta.
Perfeito joelho, notei, a saia é curta e xadrez.
Giro os olhos, cruzo o joelho e a Veja.
- Gata em pele de gente na capa. 

Natassja Kinski abaixa a Veja.
Verdizolhos nos verdizolhos de Natassja.
Vertiginosamente constrangedores.
- Nada abala a Srta. Kinski. 

Diretos e duros e doces os dois.
Grudadozolhos nos meus e os meus nem se fala nos dela.
Ganha a tensão dimensões de grito abafado.
Deixo o limite e a libido à cavalo.

Vou de texano de esporas sangrentas?
Dou de parisiense desistencialista do amor sem pecado?
Vidiando a tez de Natassja Kinski? Obrigado: 
- Divago no claustro doutor em que estamos. 

Nele me estanco prostrado entre garras.
No espaço eterno eu e a penumbra, a gata e a Veja.
Na espreita, a pantera. Goza a verdade do drama:
- Nuvem se esgueira por meu pensamento. 

Pesavam em Natassja problemas legais?
Eu digo: Sabe a Srta. Kinski ler português?
Ela: I beg your pardon? O advogado:
- Pode entrar Sra. Monteiro.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Quando o amor acaba: o natural e o desumano no humano

O belo-horizontino Paulo Mendes Campos (hoje nome de pracinha carioca junto à rua Humberto de Campos, no Leblon) escreveu uma bela crônica lírica sobre o amor: "O amor acaba". Mas o Paulo, sendo o Paulo, cheio de ternura, mas moleque, irrequieto, não ficaria satisfeito em louvar o amor piegas, ou chorar o amor perdido. O texto instiga leitora e leitor a percorrerem situações e lugares em que o amor desaparece, mas também ressurge, muda de jeito, de nome, muda até de amor. Diz o final da crônica-poema: "por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba".

Mas que amor é esse, tão disposto a acabar? Amor não é para sempre (ao menos enquanto dure, como ensina outro poeta)? Penso que, nesse poema, amor é algo mais fundamental que o amor romântico (ou mesmo parental) que tanto valorizamos, até o ponto de banalização, nos libretos de ópera, nas novelas e nos bailões sertanejos. Essa nossa mania de tornar o amor sublime, cheio de mistérios, dificulta aceitar que amar é mais corriqueiro (e, por isso, mais importante) para nós, humanos, assim como, acredito, para outros seres vivos. Toda criança cresce cuidada por um membro mais velho do grupo. Cuidar da criança acende o amor do adulto e joga a criança em um mundo em que é natural ser amada e, daí, amar. Somos assim, e ficamos doentes se não amamos.

As manifestações de preconceito ativista, de pregação política do não-amor a alguns grupos da sociedade, nos ensinam a ficar desnecessariamente doentes. As últimas eleições foram pródigas nessa matéria. Ódio aos pobres, analfabetos, índios, negros, a grave questão de saúde pública - o aborto - rebaixada a disputa de rancores morais.

Eleitores descontentes com as urnas demonizaram os nordestinos, imaginando um Brasil dividido entre uma atrasada e iletrada zona vermelha ao Norte, e uma próspera e ilustrada zona azul ao Sul. Os números desmentem essa bobagem, mas, mesmo se fosse verdade, que doença é essa que nos faz desamar ativamente quem vive ou pensa diferente de nós? Sempre há um exemplo que supera a mais desvairada imaginação. A Universidade Mackenzie, de São Paulo, quer agora ter o direito de "ser homofóbica". Entendido? A instituição, responsável pela educação de sei lá quantos mancebos, quer não apenas desamar os homossexuais (que isso é direito de qualquer um), mas pregar o desamor, um desamar militante, digamos. Tal como o adulto, a escola tem um papel cuidador em relação às crianças e jovens. Aqui, só consigo ver doença e, o que é pior, doença ensinada.

Se a ciência ajuda numa hora dessas, cito o biólogo chileno Humberto Maturana, que explica o amor como uma emoção fundadora do domínio social. Ele diz: "O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social". Não é? Acho até que o amor romântico - que cultivam entre si homem e mulher, ou, como não sabe a universidade paulistana, outras combinações de gênero - é alma gêmea do amar como fundamento do social. Mesmo quando o amor acaba. Eu mesmo vivo neste momento uma desilusão amorosa das mais perturbadoras em minha vida, e isso, do amor acabar, não me turva o desejo de amar. Pois nós, humanos (e outros seres vivos, acredito), somos assim. Naturalmente aptos para amar e acabar de amar, a cada minuto.


Publicado em O Tempo, 20/11/10 - Ilustração: Duke

terça-feira, novembro 23, 2010

Fraco

há uma vantagem em ser fraco
que só descobri em setembro
partir-se em milhares de membros
e escolher juntar os cacos



fraco é som ouvido no escuro
fraca é a brisa suave
deslizando sobre o corpo
e o fraco goza (eu juro!)

fraqueza fugaz momentânea
fraqueza ao acordar de manhã
fraqueza no corpo e na alma
fraqueza é a força mais insana



uma vantagem adicional
(de ser fraco, bem entendido)
é viver impaciente
impulsivo e visceral 

da víscera tomamos ciência, 
nos é caro cada impulso, 
e se o coração não bombeia 
então haja paciência! 



fraco pra não resistir
fraco sem poder desistir
o fraco é o oposto do morto
por ti
por ti
por ti


Belo Horizonte, outubro de 2010

domingo, outubro 17, 2010

No ar o blog do Pedro

Está no ar o blog do companheiro lingüista Pedro Perini, Gramaticalmente crônico. O texto "Ecologia de Inclusão" sobre as políticas e vivências das habilidades e desabilidades é (entre muitos outros textos) um brinco.

"A recente adesão do Brasil à Convenção Internacional sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência é um fato histórico relevante. Uma vez signatário deste documento, o país ingressa em um grupo de países que assumem diante da ONU (Organização das Nações Unidas) o compromisso político de levar adiante práticas já em curso e desenvolver pesquisas, programas e políticas para tornar viável às pessoas que tenham alguma deficiência o exercício e o gozo do lazer, do trabalho, da família, da política e das individualidades de cada cidadão, sem discriminação de cor, credo ou corpo...".

Confira o texto completo no original: http://pedroperini.wordpress.com/2010/10/12/ecologia-de-inclusao/#comment-20

sexta-feira, agosto 27, 2010

É de graça, é na praça, e é livre

Dia 12 de setembro, domingo, na Praça da Liberdade em Belo Horizonte, acontece o 8º ano do Livro de Graça na Praça - LGP 2010, com distribuição gratuita do livro Contos de Tradições, com 18 autores, de livros infantis pela Aletria, e de cordéis.

O LGP 2010 faz parte do calendário de eventos de Belo Horizonte e conta com a participação do Clube do Livro, IBC, SENAC, SESC, Corpo de Bombeiros, PMMG, Mazza Editora, Copasa e Belotur.

Domingo de sol (espero!) e livro de graça pra criançada e pra marmanjada.

segunda-feira, junho 14, 2010

O índio de mentira


Uma versão do famoso ato do apóstolo são Tomé (ver e então crer) tem sido praticada com entusiasmo cada vez maior pela grande mídia e seus espectadores. Nessa versão, o ato de ver (ou ler) exige a imediata crença no visto ou no lido. O curioso é que, se reprovamos em são Tomé a falta de fé, o pecado da nova versão é o excesso. Ou a falta de visão crítica. Mire-se no exemplo da revista semanal que atende pelo apropriado nome de Veja. A revista atingiu o cúmulo do neo-sãotomeísmo em sua matéria especial “A farra da antropologia oportunista” (edição 2163, de 05/05/2010). Não custa ver com os próprios olhos um trecho no início da matéria que, creia, diz assim: “Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional.”.

O texto é indubitável. Apresenta o fato assombroso, embrulhado em precisos percentuais, de que índios, quilombolas e camponeses (que pensávamos ser a porção marginalizada do Brasil), somados à cobertura de mata virgem cada vez mais reduzida (não me pergunte como obras de infraestrutura entram na conta), tomaram conta do país, numa épica revolução silenciosa. O que sabemos sobre 500 anos de massacres, subjugações e humilhações dos índios no Brasil é pura ilusão. Devemos crer que os verdadeiros brasileiros estão acuados e quase expulsos pela indiada ressurgida das cinzas. 

A matéria segue dando asas a uma imaginação fértil e perversa, denunciando a “indústria da demarcação” que enche de dinheiro o bolso de antropólogos e índios. Numa redação, digamos, ousada, o texto desfila subtítulos que na minha terra seriam considerados maximamente preconcei-tuosos: “Os novos canibais”, “Macumbeiros de cocar”, “Teatrinho na praia” (índios fantasiando-se de índios!), “Made in Paraguai”, “Os carambolas” (os supostos quilombolas!). 

Não há o que comentar. O visto fala por si.

Há questões graves aí: a matéria desrespeita a boa prática jornalística (o trato com os fatos e pessoas reportados); desrespeita toda uma classe profissional (os antropólogos); e assume a defesa clara (e invisível) dos interesses mais predatórios, que avançam insaciavelmente sobre índios e terras desde que somos Brasil. Tudo isso é muito sério mas quero frisar uma quarta questão. Crer à primeira vista só é possível quando a mídia mostra o que queremos ver. Por mais miseráveis e desarmados de suas culturas pelas frentes de civilização, o índio sempre continuou sendo índio. E isso nós não aceitamos! Como os demais povos que fizeram o Brasil e, bem ou mal, se abrasileiraram, queremos que o índio faça o mesmo. Nos roemos de raiva com a insistência do índio em ser índio, e, ao ridicularizá-lo, a Veja nos dá o meio de revidarmos. Acredite quem quiser. 

 Publicado em O Tempo, 13/06/10   

sábado, maio 29, 2010

Umbigodumundo

Num passado distante Oduduwa saiu do orum - o além-mundo - pra fundar uma cidade aqui no aiê, o espaço do humano e outros seres viventes. Mas nada de novo sob o sol, a não ser reduplicações do que era. Cada um de nós no aiê tem seu duplo no orum: Barack Obama não teve 70 milhões de votos, mas o dobro disso, somados os terrenos e os votos do além. E então fui eu fazer a mesma viagem oduduwense (apesar d’eu mesmo não ter poderes divinos a não ser o de preencher formulários corretamente e lograr uma posição em uma universidade nigeriana). Da darcysica Brasilândia pro umbigo do mundo, a cidade de Ilê-Ifé. Todo brasileiro, criado ao embalo de iemanjás, xangôs, oxuns e iansãs soprados no ouvido, tem motivo de sobra para considerar esta terra com o devido respeito. Mas como ensinam os iorubanos, Ifé é mais que isso, é o próprio nascedouro do humano. 

Berço da humanidade” virou lugar-comum para a África. Este continente produziu tantas diásporas fundadoras - umas das mais recentes fez da Bahia e de Havana ultramares iorubás - que o termo “afrodescendente”, no rigor da história, não discrimina nada, pois nos nomeia a todos. Na Brancolândia, evolucionistas das mais diversas furta-cores ideológicas contorceram-se em suas teorias e, por mais que não gostassem (isso nem é racismo, é algo mais fundamental: medo do escuro), as origens, quaisquer origens quando o assunto é o bicho-homem, inevitavelmente transcaem na África. O velho Darwin tinha matado a charada, sem nunca ter visto um fóssil humano africano: se nossos parentes mais próximos - gorilas e chimpanzés - vivem na África, eis um lugar incomum para uma origem comum. E, de fato, desde a profecia odu-darwiniana, nada demasiadamente humano com mais de 2 milhões de anos foi, até hoje, desenterrado fora da África. Nada, nada, nada, Blitz dixit.  

Contudo, um tio-avô mais recente do humano, o Homo erectus, foi, sim, encontrado em outras plagas, e um evolucionista pretofóbico dos anos 60 veio com essa: “a África pode ter sido o jardim-de-infância, mas a escola que fez do humano, humano, foi o grande continente Eurasiano”. Os orixás não deixaram em branco. Um santo baixou no meu britânico amigo Chris Stringer, e ele mostrou, com todos os ossos e genes, que a talescola eurasiana” não deixou aluno vivo pra contar a história. Há mais de 100 mil anos surge uma nova espécie no planeta África que iria migrar para todo o globo, das mais remotas ilhas do Pacífico sul aos fjords escandinavos e igarapés transamazônicos: o Homo sapiens. Isso quer dizer, preto no preto, que cada um de nós é profunda, exclusiva e originalmente africano. A teoria de Stringer ficou conhecida como “Out of Africa”, e hojenome a uma loja de souvenirs no aeroporto de Jonhanesburgo. 

Mas estou divagarando. Voltando ao assunto deste artigo, e em respeito ao titulo, devo explicar por que o lugar em que estou é, de fato, o umbigo do mundo, ou do aiê. Um dos achados interessantes da origem africana da humanidade é que, analisando dois indicadores genéticos de linhagem exclusivamente feminina ou masculinarespectivamente, as mitocôndrias e o cromossomo Y – chegou-se ao lugar e à época aproximados em que viveram uma “Eva” e um “Adão”, ou seja, a mãe e o pai de toda a humanidade viva. Isso não quer dizer que esses foram os primeiros humanos, mas que eles, dentre seus muitos contemporâneos, deixaram descendentes entre nós, hoje (também não quer dizer que o casal dividiu a mesma choupana: linhagens materna e paterna seguem percursos distintos). Então, leitora ou leitor, quando você disser “mama África”, pense na venerável propriedade desse termo: as mitocôndrias que trabalham no interior das suas células são tatatataranetas das organelas que, há mais de 100 mil anos, viveram nas células de uma respeitável matrona africana. Se você for mulher, seus filhos vão herdar esse legado, mas se for varão... 

chegamos a Adão e (espero!) no umbigo do artigo. Quem leu a Bíblia com atenção, ou estudou a história das preocupações teológicas, deve ter notado um problema deveras seríssimo com que se depararam os intérpretes das escrituras. Adão tinha umbigo? Caso particularmente grave pros artistas incumbidos de ilustrar as passagens sacras. Decidiu-se, por fim, que sim, o primeiro macho tinha umbigo, e por um motivo preciso: Deus não criou apenas o mundo, criou também sua história. Ao dar um umbigo a Adão (aliás, também a Eva, igualmente desprovida de uma mamãe), o Artífice de Tudo empresta às origens a mesma dignidade estética, e, portanto, legitimidade, do desenrolar dos eventos. 

Por isso a cidade de onde escrevo essas palavras, Ilê-Ifé, é, com todo direito divino e pagão, a morada umbilical do universo. Os céticos (e, não, os Celtas, que eram muito devotos) podem argumentar que Oduduwa é um personagem histórico do século 11 (em uma Ifé habitada há milhares de anos), mistificado pelo povo iorubano como pai-fundador. Mas mesmo os rigores da evidência científica concordam que, se não foram os próprios habitantes de Ifé os paladinos da aventura humana ex-Africa, muita coisa aconteceu no próprio continente, como o surgimento de vários povos a partir de uma região coincidente com a Iorubalândia (os bantus, por exemplo, que se espalharam por todo o centro e sul africano). Sendo assim, sejamos simétricos, como nos ensina a novíssima antropologia pós-moderna, e aceitemos a sapiência judaico-cristã, que teologicamente coloca um umbigo numa barriguinha biologicamente lisa, e aceitemos a sabedoria iorubana, que coloca um duplo no orum para cada ente do aiê. A humanidade surgiu aqui, na cidade sagrada de Ilê-Ifé, um início fecundo de precedentes, tornando nossas origens ainda mais originais.

Publicado no Cometa Itabirano novembro/2008