terça-feira, fevereiro 09, 2010

Pobre Darwin!

Charles Darwin deu origem a uma reviravolta na história intelectual, e isso não tem a ver com a existência de Deus ou a origem do homem. É algo mais fascinante: a aceitação, pela comunidade humana (especialmente os cientistas), do fenômeno da evolução, ou seja, a história da diversificação dos seres vivos na Terra. Darwin, além disso, propôs uma teoria, a seleção natural, para explicar a evolução. É isso o que a ciência faz: propõe mecanismos explicativos para fenômenos aceitos pelos cientistas que, postos para funcionar, irão gerar o tal fenômeno. Se você aceita as coerências operacionais da seleção natural, ela irá explicar o fenômeno da evolução. Darwin foi impecável ao propor sua teoria. Não apenas aceitamos a evolução, mas o modo engenhoso e generoso de Darwin tratá-la mudou a atitude dos cientistas e de todos nós.

E o que a evolução, por um lado, e as teorias científicas, de outro, têm que ver com ateísmo, agnosticismo ou crenças religiosas? Essa é uma discussão não só inútil, mas enganosa. Ela confunde as pessoas ao confundir domínios explicativos. Ateísmo ou crença são posicionamentos humanos em relação à espiritualidade, e não elementos de teorias científicas. Se o fenômeno da evolução implica que repolhos e seres humanos descendem de outros seres, isso faz parte do fenômeno tal como descrito pelos cientistas, sem fazer referência a elementos estranhos ao fenômeno. Isso não quer dizer que a teoria é “agnóstica” sobre se uma divindade criou isso ou aquilo, pois, nesse caso, o cientista estaria dizendo que há algum aspecto do fenômeno que a teoria não pode explicar, e o objetivo das teorias é explicar o fenômeno! Quando um cientista encontra um aspecto do fenômeno que a teoria não explica mais, ele propõe outro mecanismo, muda de teoria. Assim fez Copérnico depois de Ptolomeu, Einstein depois de Newton.

  Darwin na igreja... em PhotoshopContest.com

Darwin ainda não foi totalmente digerido por nós, e duas barreiras nos impedem de saborear o naturalista inglês. A primeira é o dogmatismo de alguns cientistas, que transformou o legado darwiniano em explicações reducionistas da evolução. Ainda hoje, estudantes repetem nas aulas de biologia, sem nunca ter lido Darwin, que a “competição” causa a diversificação dos seres vivos. Como se organismos (ou genes) tratassem de competir por alguma coisa! A outra barreira é a absurda oposição entre darwinismo e religião. Alguns cientistas põem lenha nessa fogueira, dizendo-se ateus (o que é legítimo) e vinculando seu ateísmo ao darwinismo (o que é um contra-senso). Do outro lado dessa moeda, pessoas mal-intencionadas (pois seu objetivo é político, e não acadêmico) ocupam espaço na mídia mundial com o “criacionismo científico” e a “teoria do design inteligente”. Nem vale a pena mostrar a incoerência de chamar essas bobagens de “científico” ou de “teoria”. Jesus disse: “a César o que é de César”. Pois que César fique em Roma, e deixe nós, gauleses, em paz.

Publicado em O Tempo, 08/09/2009