sábado, janeiro 30, 2010

Grandes palavras


Palavrões em livros didáticos. Uma mistura curiosa, pois se nada é mais didático que um palavrão, seu nicho ecológico não pode ser o ensino formal. Ensinado às crianças por sisudos educadores, o palavrão deixa de ser palavrão, vira palavra. Seu encanto é a saliência, nascida do não-dizer. A atração das crianças pelas palavras feias vem daí, elas aprendem que tais palavras são proibidas, e por isso mais encantadoras que as outras. Sabiamente, as religiões fazem o mesmo: os termos divinos tornam-se impronunciáveis (não diga Seu nome em vão) e, portanto, mais maravilhosos.

Na conservadora Lisboa dos anos 70, lembro-me de como meus coleguinhas e eu nos deliciávamos com palavras proscritas. Já fui publicamente humilhado pela professora (de quem, aliás, morro de saudades) por conta de um palavrão. Em sociedades moralmente agrárias e católicas como a brasileira e a portuguesa, palavrão é o que a criança não diz na frente dos pais, dos professores, da autoridade. É o que se diz secretamente, só pro melhor amigo, e mesmo assim de noite, baixinho, debaixo das cobertas. Novamente por essa moralidade agrária, o palavrão também é associado à gente pobre: é da boca do vulgo (na senzala, na cozinha) que saem vulgaridades, embora, pela histórica associação da classe senhorial com as modas da metrópole, seja no salão requintado que as baixezas da fala se misturam às baixelas de prata.

Nas cidades cosmopolitas, o palavrão perde a saliência mágica e mistura-se às palavras mundanas. No Rio e em Londres, por exemplo, as duas palavras mais execradas nas respectivas línguas foram incorporadas ao falar cotidiano e viraram um coringa lingüístico, como o “pá” português, o “bah” gaúcho ou o “uai” mineiro. Outra, referente ao órgão masculino, enriqueceu-se urbanamente e tanto pode significar uma coisa excelente (do x), insatisfação (que x) ou surpresa (x!). Quem já leu Gregório de Mattos, mestre da flor do Lácio de 300 anos atrás, sabe o quanto isso é antigo, produtivo e literário na língua portuguesa.

Típico no pensamento ocidental é a associação entre palavrão e as desvalorizadas emoções, que devemos controlar pela racionalidade ou elevação espiritual. É o que se diz na hora da raiva. Ou do amor. Se quiser saber se uma palavra é feia, um bom teste negativo é procurá-la no jornal. Se encontrar, não é palavrão. Ao contrário de termos publicáveis que se referem à guerra, à fome, à doença e até à escatologia e ao sexo (para alguns, matérias-primas do palavrão), a má palavra não tira sua força do significado, mas do não-uso.

Oponho-me veementemente à inclusão de palavrões nos livros didáticos, pois sou um admirador desse rico vocabulário proibido, e torço por sua sobrevivência. Os moralistas que não gostam de palavras feias, por outro lado, devem fazer uma campanha para sua incorporação massiva aos livros didáticos (atualizados anualmente, claro). Seria o fim das grandes palavras.

Publicado em O Tempo, 05/11/2009