domingo, janeiro 02, 2011

Beatles, Assange e Ano Novo

Certos assuntos políticos são difíceis de desenroscar, pois chegam fantasiados até nós, sempre que nos falta espírito crítico ou sobra preguiça. Um meio de despolitização é a manipulação dos veículos de comunicação de massa, empurrados daqui e dali para disseminar gostos, opiniões e esperanças por nossa cultura afora. Tudo pode descer goela abaixo quando bem divulgado. Não é à toa que Vargas Llosa chamou os sertões de “fim do mundo”. Para esse sul-americano naturalizado europeu, qualquer lugar que se afasta do centro hegemônico é o fim do mundo. Dele, é claro. O Conselheiro foi tão mais sábio quanto desplugado do mundo de Vargas Llosa. Euclides da Cunha também.

Século passado, surge uma revolta contra a massificação, sob a bandeira da paz, do amor e todo o resto. O alvo era o consumismo e o anticomunismo histéricos, reforçados pela mídia no ocidente, inclusive no Brasil. Os Beatles, enlatados para consumo alienante, eram pessoas sintonizadas com a disposição rebelde de sua geração, e se posicionaram publicamente o quanto puderam (contra a guerra no Vietnã, por exemplo). Seu papel político foi espertamente distorcido, suscitando a desconfiança das esquerdas e, apesar da boa música, o apoio da indústria brega da diversão. O assassinato de Lennon, à beira das festas de fim de ano e alvorada dos anos 80, sofreu um trabalho de pasteurização da mensagem política, propagado em uníssono pela mídia: voltem pra casa que o sonho acabou. Essa contradição beatlemaníaca, qualidade política e estética vendida como latas de salsicha, era a tônica da contracultura versão anos 60, pois os revoltosos eram filhos adotivos (nem tão diferentes assim) do sistema contra o qual tentaram lutar.

E eis que renasce a oposição à politica manipuladora em massa. Agora, são os meios de comunicação que justificam fins mais promissores. Do uso restrito até o dia-a-dia dos adolescentes, a internet tornou-se um comunicador de longo alcance ao alcance de todos. O que acontece com as tecnologias (e conosco) depende do uso que se faz delas, mas a configuração da tecnologia também deve ser levada em conta. Se a “rede” de TV divulga a partir de um centro, na internet os nós da rede são bilhões de usuários, que em um momento ou outro irão interferir, individual ou coletivamente, na qualidade da mensagem distribuída pelo sistema. É como as conversas que mantemos uns com os outros há milhares de anos, tecendo a rede maior que chamamos de cultura.

Sim, há espaço para a hegemonia, para manipulação de mecanismos de busca e outros truques à disposição do poder instituído. Mas isso faz parte do jogo, mesmo na conversa interpessoal. O que muda é a força de propagação, que a comunicação distribuída em rede, confere a qualquer um: não apenas a governos, grupos econômicos e veículos de comunicação mas a mim, a você ou a Julian Assange. Estamos voltando aos tempos em que fazíamos, todos, a cultura. 

Publicado em O Tempo, 31/12/10