segunda-feira, janeiro 09, 2006

2005: o ano do chimpanzé

“Nos últimos anos, os pesquisadores têm descoberto (...) tantos fósseis pré-humanos novos e significativos que o destino de quaisquer anotações didáticas só pode ser descrito com o lema de uma economia fundamentalmente irracional - obsolescência planejada”.

Esse comentário de Steve Gould, de 1976, ilustra o acúmulo quase frenético de evidências da evolução humana desde a descoberta do primeiro fóssil do Homem de Neanderthal, há quase 200 anos. De lá pra cá, a situação não mudou. Apenas em nosso curto século XXI, a paleoantropologia - ciência responsável por desenterrar noss
os ancestrais - brindou-nos com dezenas de surpresas, desde o fóssil mais antigo (“Toumaï”, de 6 milhões de anos), até um “gnomo” de apenas 1 metro de altura, que viveu há meros 13 mil anos na Indonésia. Diante desse quadro, o que fazer com a tradicional pergunta pelo “elo perdido” da evolução humana? Não há apenas um, mas centenas de elos, uma verdadeira floresta de achados que serve a teorias diversas, às vezes até conflitantes, de nossas relações evolutivas. Mas admito que o alvo da pergunta é uma caricatura de nossa evolução, que, na sua versão mais grotesca, diz que “o homem veio do macaco”.

Esse é um mito, e daqueles mitos ruinzinhos, que embaçam a vista. Qualquer macaco atual é, como já diz o adjetivo, atual, com uma história evolutiva própria, assim como os humanos têm a sua. Há duas fontes importantes de perpetuação dessa cantilena. Uma é a facção da direita evangélica que quer, a todo custo (por motivos políticos, diga-se) “desmascarar a heresia darwinista”. O efeito retórico é avassalador: milhares de fiéis voltam pra casa dignificados e agradecidos ao pastor após ouvir que seus avós não têm domicílio fixo no zoológico local. É preciso enfatizar os limites desse fenômeno, pois nenhuma religião séria dedica os ensinamentos a derrubar a evolução, seja porque seus seguidores aceitam as evidências científicas ou por entenderem que, de todo modo, essa não é uma questão de sua alçada.

Mas a principal fonte do mito nasce nos próprios corredores da ciência e transborda pela imprensa até desaguar na conversa com o motorista do táxi. Muitas pesquisas com primatas (o ramo mamífero que partilhamos com os macacos) são divulgadas como se fossem apenas uma etapa na decifração da natureza humana. Aceito que tenhamos um interesse especial em nós mesmos, e que a ciência busque a publicidade como um caminho para o auto-financiamento. Mas, como dizem em Portugal, “tudo que é demais, demasiado é”. Transformar nossos parentes modernos em fósseis vivos, estacionados num degrau mais baixo da escada evolutiva, é um desrespeito a essas criaturas fascinantes por mérito próprio. Uma ofensa à famiglia, para citar Michael Corleone.

Em 2005, duas notícias interessantes em si mesmas foram içadas à condição de revelações da mais alta importância pelo motivo errado, na minha humana opinião. Em setembro, as duas mais prestigiosas revistas científicas - Science e Nature - noticiaram o tão esperado sequenciamento do genoma do chimpanzé. A Nature foi além e dedicou a sua edição de 01/09/05 a esses simpáticos primatas. O motivo de tanto alarde: já a algumas décadas é consenso na comunidade científica que o chimpanzé - ao lado de seu primo menos famoso, o bonobo - é o parente evolutivo mais próximo do humano. Além do parentesco comprovado por análises anatômicas e moleculares, o chimpanzé também é estrela das avançadíssimas ciências cognitivas, pois o seu estudo abre - assim dizem os acadêmicos - uma “janela” para entendermos a inteligência, a linguagem e o comportamento humanos. Isso sem falar na pesquisa médica. Inúmeras doenças que nos acometem - de gripezinhas à tuberculose e a AIDS - são igualmente perniciosas para o chimpanzé, dadas as incríveis semelhanças da fisiologia, do sistema imune, e por aí vai.

E a segunda revelação é ainda mais peculiar. Enquanto os fósseis humanos contam-se aos milhares (vide o primeiro parágrafo), a mesma edição da Nature noticia o primeiro fóssil chimpanzé já descoberto na história. Não deu pra sentir o impacto da notícia? Então pense assim: enquanto passamos quase dois séculos debatendo sobre o misterioso “elo perdido” da evolução humana, até este nosso ano de 2005 a evolução do nosso parente mais próximo, essa sim, estava envolta em um mistério atordoante! Se com tantas evidências ainda não sabemos de onde viemos, porque ninguém nunca antes perguntou “e de onde diabos vieram eles”? O macaco veio do humano (desculpem-me por ajudar a perpetuar o mito, assim de ponta-cabeça) seria uma resposta plausível, muito plausível. Até este nosso ano de 2005.
Já fui acusado, injustamente, de denegrir o humano. Ao contrário. Assim como torço pro América e acho nós americanos o máximo, também ostento orgulhoso meu brasão da famiglia Homo sapiens. Mas após uma centena de anos beneficiando-nos clínica e culturalmente, estudando, dissecando, enjaulando, dizimando, comprimindo suas populações para dar espaço à nossa, destruindo seus habitats de maneira irresponsável, será que não podíamos ao menos uma vez, só este ano, generosamente ofertar a esses animais - sejam eles primos ou não, isso realmente não importa - os nossos esforços tão humanamente inspirados? 2005 é o ano do chimpanzé, não por nossa causa, mas em causa deles.
Belo Horizonte, 30 de setembro de 2005