quarta-feira, janeiro 26, 2011

O sorriso do lagarto

O que digo ao longo deste texto me foi sugerido por duas cartas de leitor, publicadas no mesmo dia 18 de janeiro último, em O Tempo. Na primeira, o leitor se diz indignado com a TV Globo por conta de um final de novela eticamente incorreto. O leitor-telespectador  denuncia um “... efeito socialmente negativo, devido à força da emissora, ao mostrar a vitória do crime e do mal sobre o bem e a moral”. A segunda carta também trata de uma indignação moral manifesta: a leitora-telespectadora assiste chocada, na mesma Globo, a presidente Dilma e seus comandados esbanjando sorrisos em plena reunião ministerial (conta-nos a repórter em off) sobre as trágicas enchentes no Rio.

Desde o início gostei das duas cartas, assim lado a lado, pois elas são uma caricatura da troca de papéis entre os gêneros: o macho preocupado com o andamento da novela e a fêmea atenta ao noticiário nacional. Mas é preciso esquecer os gêneros pra atentar para a relação entre o público (qualquer público) e a televisão (qualquer divulgador massivo de entretenimento e opinião).  O telespectador 1, que como todos nós está acostumadíssimo à moral teatralizada (das tragédias de Ésquilo a Hollywood) sabe muito bem que novela é novela, que tudo é encenação. Mas se permite emocionar, e, após limpar as lágrimas, se dá conta que o teatro tem uma função social, que ali se passa uma “mensagem”, e tanto pior (daí sua indignação) se a tal mensagem não se ajusta aos melhores valores que o telespectador 1 julga reconhecer na própria sociedade.

O telespectador 2 também está acostumado à moral teatralizada. Também se emociona com o que assiste e comunga, com o telespectador 1, distinções semelhantes sobre o bem e o mal. No entanto, ao ser avisado que aquilo que assiste não é teatro, mas um relato factual das tragédias humanas, põe de lado tudo o que sabe sobre quem produziu o relato, sobre o responsável pela “mensagem” e se concentra no show em si mesmo. Dilma às gargalhadas enquanto discute a morte de centenas de pessoas. O telespectador 2 não precisa entender (e isso foi dito na matéria) que naquela reunião discutiram-se outros assuntos. Não precisa entender que imagens e sons podem e são editadas e que, naquele caso específico, imagens das risadas governamentais e a parte crucial da locução da repórter - a reunião sobre as enchentes - foram sincronizadas.

Em suma, ao contrário do “consciente” telespectador 1, apreciador e crítico das tragédias ficcionais, o telespectador 2 está magicamente encantado pelo espetáculo. Alienado, para usar uma palavra fora de moda. A indignação pela imagem do mal está ali presente, mas o mal em carne e osso continua a sorrir para o espectador, ou sorrir do espectador. E assim seguimos vivendo ao vivo essa outra criatura da ficção, o Grande Irmão vislumbrado por George Orwell e reprisado em nossas casas à noite, na telinha da Globo. Uma calamidade verdadeiramente pública.