sábado, maio 01, 2010

Boa correlação, má explicação


Devíamos repetir a seguinte frase como um mantra, antes do café-da-manhã: não há categorias na natureza. No entanto, categorias são cruciais para falarmos sobre essa natureza, ou, como disse um filósofo austríaco de nome impronunciável, “do que se não pode falar, é melhor calar-se”. Aprendemos muito cedo significados particulares de “mulher” e “homem”, e vivemos a vida às voltas com essas distinções. É a partir dessas categorias que negociamos e modificamos seus significados. Ainda que tal negociação faça parte do dia-a-dia, falar de categorias como construção social continua irritando muita gente, como se isso fizesse toda e qualquer diferença entre “mulher” e “homem” desmanchar no ar. Não faz, eu garanto (tenho duas filhas, e a minha namorada, até onde eu saiba, é uma fêmea legítima).

Pelo que entendo de nossa biologia, e, por outro lado, da história da sociedade industrial, a mulher sempre esteve no mercado de trabalho. Uma regularidade do modo de vida humano é o investimento de ambos os progenitores na sobrevida da prole, e, para além da família, a participação de todos os membros da comunidade na sobrevida do grupo. Isso nunca quis dizer que uma classe de membros (os de ancas largas) tem de ficar em casa fazendo a janta, e a outra (de barbas longas), sair pra caçar ou fazer seja lá o que for. Ao falarmos na correlação entre “consumo”, “mercado de trabalho” e “mulher”, não há dúvida de que cada categoria dessas só faz sentido no contexto das atuais relações econômicas e de outras facetas das relações humanas, como a construção da noção de “outro”.

Tanto os menininhos quanto as menininhas de nossa sociedade tendem a construir a mulher como um “outro”. Um exemplo batido, mas que merece ser repisado pela clareza, são os hiper-consumidos filmes Disney. Eles nos ensinam a viver as relações de consumo em sintonia com a distinção, não só da mulher, mas de “árabes”, “índios” e “latinos”, como alteridades, seres diferentões, de idiotizados a malévolos. Não é preciso ser mulher para sofrer esse processo de estranhamento com algo que, pelas categorias aprendidas, deveríamos nos identificar. Nós, brasileiros, vivemos isso em O Rei Leão. Além do estabelecimento do masculino como a única fonte concedida de poder, ali os nobres leões rugem com acento britânico, enquanto as depravadas hienas cacarejam com o sotaque suburbano de negros e latinos (idéia que roubei de Henry Giroux). Quem acha que a reprodução desse modelo em nada afeta o modo de nossas crianças construírem suas categorias, deve ter assistido, como eu mesmo, a filmes Disney demais!

Dá-se um processo semelhante ao discutirmos o impacto da “mulher trabalhando fora” nas relações familiares, e então inferir - como é objeto deste debate - um papel causal da correlação observada entre a inserção econômica da mulher e um “consumismo”. Tem algo errado aí. Consumismo - a aquisição de bens em escala maior que os ditames da subsistência - é uma demanda dos donos da produção, ávidos por desovar seus artigos a qualquer custo, desde que não seja o próprio. Inicialmente, “mulher trabalhando fora” (insisto em colocar isso entre aspas: pensem nos arrozais do Vietnam!) é uma necessidade de recrutamento de mão-de-obra. Barata, é claro, pois esse recrutamento é feito diretamente em uma sociedade patriarcal que configura - assim nos ensinam Simba e Nala - a mulher como cidadão de segunda classe. Em um segundo momento, não passou despercebido que esse novo trabalhador é também consumidor, com necessidades próprias e específicas, uma diversidade sempre bem-vinda no perspicaz mundo dos negócios.

De onde vem a idéia da “mulher, a consumista”? Não de um histórico poder econômico, pois, como todos sabemos (e a maioria dos patrões, além de saber, pratica), mulher ganha menos, nada mais sendo variável. Para entender, passamos dos leões à loiríssima Barbie. Ao comprar uma Barbie, a menininha leva de brinde (dessa vez roubei a idéia de Shirley Steinberg e Bernadete Mourão): a) um modelo de beleza; b) um modelo de consumo adequado ao feminino (futilidade e alienação); e c), o mais importante, a cultura da não-produção e da submissão. Brinquei de Falcon quando garoto, com o mesmíssimo resultado ideológico do não-brincar-de-Barbie: homens fazem, mulheres consomem. É notável como isso é contrário à experiência da maioria de nós, homens, de mulheres trabalhando duro à nossa volta, a vida inteira!

No mínimo, a categoria “mulher, a consumista” é resultado da sociedade patriarcal de consumo. No máximo, o caminho causal inverso é uma boa correlação, dificilmente uma explicação, e de modo algum uma boa explicação.

* Publicado em O Tempo, 15/01/06, no debate: “A inserção da mulher no mercado de trabalho está relacionada ao aumento do consumismo?”