Petit Santos


O QUE TODO MUNDO VIU: O BRASIL E A PROPAGANDA ANTI-AÉREA
para Ivan Vianna

Alguns mezes depois, o Brasil, com grande espanto de todos os entendidos, atravessava Paris, lindo na sua extrema transparencia, como uma grande bola de sabão”, diz Alberto Santos Dumont em O que eu vi, o que nós veremos. E uma página depois: “Este minusculo Brasil despertou grande curiosidade. Era tão pequeno que diziam que eu viajava com elle dentro da minha mala! Nelle e em outros, fiz, em varios mezes, amiudadas viagens, em que ia penetrando na intimidade do segredo das manobras aéreas”.

Parece que Santos Dumont caçoa da gente em seu texto. Não caçoa: “Brasil” não é figura de linguagem, é uma pérola da engenharia aeronáutica, precursor da miniaturização de tudo, da nanotecnomania de que sofremos hoje. E caçoa: Brasil tão pequeno (em sua maldição histórica de viver para servir os grandes) e, no entanto, tão curioso ao olho estrangeiro, sobrevoando primeiros mundos, transparente, alegre, vivaz. O Brasil vive-se bem, ainda que em ele o povo viva mal. um brasileiro para penetrar em intimidades aéreas, um povo que ri do próprio chão para fazer antropofagia do ar. Santos Dumont, como nós todos, sonha alto com seu brasilzinho dentro da mala. 10 anos depois do “Brasil”, Alberto boquiabriu a Europa levantando do chão um mais-pesado-que-o-ar. Este ano estamos centenariando esse feito, que é de 1906*.



E então vêm nossos irmãozões do Norte, representantes de “boa parte da alegria deste mundo”, na lírica de Caetano. Incapazes de erguerem a si mesmos com o peso infindável que lhes impõe o pragmatismo pecuniário, os Wright Brothers esconderam-se na pacata cidade de Kitty Hawk, deslizaram 300kg de estrutura toscamente aerodinâmica sobre trilhos, armaram uma catapulta e acionaram o mecanismo, botando o bicho no ar. Há 3 anos, os americanos centenariaram esse feito, que é de 1903. Melhor dito, em 1908 os Brothers relataram pro mundo o que teriam feito em 1903.


 

Bons historiadores da aviação brasileiros (Gondim da Fonseca é de quem mais gosto; meu vô Ivan, jornalista de aviação nos anos 30, também desfila no meu panteão pessoal) mataram essa charadatempos, vou relembrá-la e acrescentar um dado recente. 1) O vôo de 1903, na costa leste dos EUA, é um aeroenigma: nada de fotos, nada de testemunhas at all, no auge do Chicago Tribune e do New York Times. 2) Mesmo que o vôo tenha ocorrido em 1903, o ocorrido não é vôo, pois ninguém sai por atirando aviões de catapultas. Aviões são trecos que decolam, voam e pousam, right? 3) Nas comemorações do centenário, testemunhado por G. W. Bush em pessoa, uma réplica do Flyer - o nome da criança -, além de não decolar sem ajuda externa, tampouco voou horizontalmente, deixando, como única opção ontológica, pro Flyer, o pouso. O Flyer é uma... uma cousa que pousa. 1903 seria então o ano do primeiro pouso da história, e a máquina, nomeada siouxmente, “Aquele-que-Pousa” (um amigo meu, engenheiro aeronáutico, alertou-me que o melhor nome tecnoindígena seria “Um-corpo-que-cai”). 

 
Ai, ai, estou ficando ranzinza e nacionalista. Deixem os yankees curtirem seus Brothers, queaté gosto. Voar pela primeira vez é privilégio de todos, pequenos e grandes. Dos franceses Montgolfier (precedidos em 70 anos pelo Padre Bartolomeu de Gusmão), passando por Lindbergh (precedido em 5 anos por Gago Coutinho e Sacadura Cabral) até primeiridades avoantes como Timothy Leary (mas nós temos Raulzito). O excêntrico Alberto nunca fez muita questão de ser cultuado como pioneiro ou herói. Se ele viu longe, é porque decolou do ombro de gigantes.
* O Cometa Itabirano, outubro de 2006