Vou contar, é claro, uma história de espionagem e romance. Espiávamos o quanto podíamos as nossas colegas judias da Escola Albert Einstein, na rua Pernambuco. A escola ainda funciona no prédio da União Israelita de Belo Horizonte e umas tantas vezes invadimos a biblioteca para roubar livros em hebraico. Um adolescente metido a intelectual rouba livros. Tudo bem. Mas roubar livros em hebraico é coisa de gente perturbada ao extremo, e nós éramos tudo isso.
Para confessar uma modéstia perdida, eu sempre desconfiei que não éramos nada daquilo, mas mudei de idéia há alguns meses, na comemoração dos 70 anos da escola. A exposição de fotos mostrava desde relíquias amareladas dos anos 30 (imaginem, do tempo da diáspora!), até as escaneadas do aqui-e-agora, mas nem uma só lembrança do nosso período - de 1980 a 1983. Antecipando em um ano o tema do livro de Orwell, a Mossad suprimiu a memória de nossa guerrilha escolar. Éramos uns vitoriosos e não sabíamos! E não foi à toa. Aquela foi a época mais conturbada de toda a história da humanidade: o governo embalava o Pró-álcool e John Lennon, que era mais popular que Jesus Cristo, acabara de ser assassinado. O sonho - e a era das discotecas - acabou. Os tempos eram ao mesmo tempo anacrônicos e incongruentes: o Pirulito ficava na Savassi, lugar onde nunca esteve antes e jamais iria ficar novamente.
Nosso jeito de perverter tudo e todos era bem especial: pela absoluta falta de propósito embrulhada em engajamento visual. Como nossos pais diziam-se de esquerda, andávamos na escola e pela Praça da Liberdade afora com camisas vermelhas e uma foice e um martelo enormes e amarelos no peito. De 80 a 83, ninguém sabia o que fazer com isso: nossos avançados pais e professores não decidiam se isso era louvável, perigoso ou idiota. E a polícia ou achava bonito ou não ligava (quem, na época, havia contado alguma coisa sobre comunismo para um PM nos seus vinte e poucos anos?), e a UMES-BH - dominada por simpáticos stalinistas filhos de peemedebistas da Faculdade de Medicina - nem sabia que a gente existia. Só os quase-extintos fascistas, resquícios da Tradicional Família Mineira (hoje muito informatizada para merecer esse nome), eram a nossa salvação, brindando-nos com muita cara feia nos ônibus, no Parque Municipal, no Palácio das Artes, no Mercado Central. Éramos hedonistas, está claro: máxima culpa de Belo Horizonte e das judias do Einstein.
Um parágrafo para nossa colega, saudosíssima Elena. Alunos, professores e rabinos do colégio Theodor Herzl foram à nossa escola para um jogo de bola amistoso (judeu contra judeu é amistoso) e Elena comandou a festa. Sob sua liderança, estampamos em nossas camisetas um chocante “Beguin retzaeh” (Menahem Beguin: o líder israelense que comandou o massacre de Sabra e Shatila; retzaeh: provavelmente “assassino” em hebraico castiço - nunca conferimos a pertinência do termo). Amistosidade abalada, é óbvio, e nunca mais nossos irmãos co-sionistas voltaram a pisar no nosso lado de Gaza.
Hoje olho para minha cidade e nem consigo imaginar que há apenas 25 anos Belo Horizonte era o epicentro de uma grande conspiração internacional. Como ficou o mundo depois disso? Uma de minhas filhas estuda no mesmo Einstein; os Estados Unidos continuam se achando donos do mundo; e meu deca-campeão América segue com os resultados de sempre. Até o Pirulito está onde sempre esteve, eterno na Praça Sete, como se sua temporada savassiana tivesse sido apagada da novolíngua belorizontina. E permanece suspirar por um Oriente de Médio pra melhor. Paz praqueles povos de nariz grande. Isso, sim, iria redimir nossa linda futilidade da Rua Pernambuco.
Um comentário:
Sensasional.... Valeu Beto. Abçs.
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