segunda-feira, março 22, 2010

Vida de cachorro: clones e indivíduos


Meu melhor amigo foi Zorro, um cachorro preto da raça dachshund. Como quase todos do seu tipo, Zorro tinha aquela carinha mascarada, contrastando o rosto heróico com pernas ridiculamente curtas. E como aconteceu com várias raças de cães ao longo dos seus 15 mil anos de convivência com os humanos, o dachshund surgiu com um propósito: esgueirar-se, com sua forma de salsicha, pela toca estreita do animal caçado, que bem podia ser uma raposa - daí “zorro”, na nossa irmã língua espanhola.

Além da conformação física, dizemos que também o comportamento canino segue prescrições de raça. Há uma demanda social contra o “uso” de pitbulls, rotweillers e outras feras, do mesmo modo que se proíbe o porte de armas e as pipas com cerol. Mas a consciência popular tem argumentos contra o determinismo. Assim como não falamos de diferenças raciais humanas (ao menos publicamente, e em tempos de correção política), criadores de cães lembram-nos que a conduta do cachorro reflete as vicissitudes de seu adestramento, e não o imperativo genético. Ou seja, a relação do homem com o melhor amigo do homem é mais um capítulo dessa antiga novela, o debate entre natureza e cultura. 


No dia 4 de agosto de 2005, a novela canina ganhou contornos de minissérie, da história da linhagem ao episódio de uma só geração. Cientistas coreanos anunciaram na revista Nature o primeiro cachorro clonado, cujo nome é uma jóia de adequação e bom-humor: “Snuppy”, acrônimo de Seoul National University Puppy (cãozinho, em inglês). A partir do material genético de um galgo afegão, o Snuppy embrionário foi implantado em uma cadela da raça labrador. O filhote é cara e focinho da matriz genética, e não lembra nem de longe sua nutriz materna. Que lições podemos tirar dessas semelhanças e diferenças? Infelizmente quase nenhuma, se o que estamos querendo é saber antecipadamente o final da novela. 


Espero que um parágrafo explicativo não desanime leigos nem irrite especialistas. Clonagem é a fusão do núcleo de uma célula somática (da pele, por exemplo) com uma célula-ovo cujo núcleo foi removido, e sua implantação em um organismo receptor, a “mãe de aluguel”. Como o DNA está no núcleo, dizemos que a informação genética vem do doador, e o papel do ovo anucleado ou do receptor seria secundário. Ainda que essa interpretação esteja correta (e não está), ela reflete um dos maiores preconceitos do pensamento ocidental desde Aristóteles: que a mãe é apenas o repositório da verdadeira chama vital, e, a tal chama, uma prerrogativa masculina. Ao enfatizar a contribuição igual de ambos os genitores em organismos de reprodução sexuada, a genética desarmou esse chauvinismo, mas reteve uma de suas premissas: o DNA contém as instruções de montagem e o resto do maquinário segue as instruções. Como um clone tem o mesmo DNA do indivíduo doador, deveríamos esperar que o organismo resultante fosse uma cópia idêntica. Mas é isso mesmo o que acontece?


O problema é que a biologia de qualquer organismo, desde as mais elementares interações dentro da célula até a construção da personalidade (ou caninidade), é realizada a cada momento no percurso do desenvolvimento. Elefantezinhos continuam parecendo-se com elefantes, e elefantes não nascem de formigas, mas a história biológica de cada elefante e de cada formiga individual é única. Um cão “naturalmente mau” pode continuar a ser chamado assim (e colocado, junto com seu dono, em uma coleira), sem que isso implique determinação genética ou que sua condição seja imutável. Até defeitos genéticos são reversíveis, como sabe todo mundo que usa óculos, e problemas de educação podem ser persistentes, como tem demonstrado uma parte de nossa classe política e empresarial.

Snuppy não foi o primeiro mamífero clonado. A lista inclui ratos, cavalos, coelhos, o segundo melhor amigo do homem - o gato - e a pioneira ovelha Dolly. Dolly, a rigor, nem pode ser chamada de clone. É uma “quimera”, pois recebeu material genético tanto do doador quanto da célula-ovo (sim, também há DNA fora do núcleo). Quanto ao gato, a imprensa científica não escondeu sua surpresa ao descobrir que o clone possuía um padrão de pelagem distinto de seu doador genético. Mas isso só deve nos surpreender se continuarmos a ver o organismo como o resultado de instruções escritas previamente a ferro e fogo no genoma. Ao compararmos a história individual de Snuppy com a de outros organismos clonados, vemos que as técnicas precisam ser diferentes e os resultados também não são iguais. Isso porque tanto as linhagens (as ovelhas, os cães), quantos os indivíduos (Dolly, Snuppy), exprimem uma tensão permanente na história de todo objeto vivo: a tensão entre a conservação e a mudança. Sem a conservação, não podemos sequer falar de linhagens históricas. Sem a variação, não ficaríamos tão maravilhados com as regularidades observadas, e os cientistas teriam bem menos o que fazer. Não há teoria científica possível sem um mundo de irregularidades desconcertantes.


publicado em O Tempo, 19/08/05